Publicada em: 16/05/2007 às 15:05Entrevista CLAM por Washington Castilhos
Homofobia impune
No início do ano, pichações com ameaças homofóbicas, atribuídas a um grupo intitulado "Farmeganistão", atingiram muros da rua Farme de Amoedo, principal trecho de freqüência GLBT da cidade do Rio de Janeiro. A rua é localizada no bairro de Ipanema, na zona sul da cidade, lugar geralmente freqüentado por pessoas de alto poder aquisitivo. Em fevereiro, o Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual, temendo ações da gangue durante o Carnaval, organizou um ato público e o policiamento no local foi reforçado. No extremo oposto da cidade, a Baixada Fluminense aglomera 14 municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, sendo também palco de crimes de violência contra homossexuais, especialmente contra as travestis que realizam trabalho sexual nas rodovias. Diferentemente de Ipanema, as agressões na Baixada Fluminense acontecem quase todos os dias. Acostumado a retratar em seus documentários o cotidiano de gays, lésbicas e transgêneros da região, o cineasta Vagner Almeida não vê diferença entre um crime de ódio ocorrido em áreas socialmente privilegiadas ou nos cinturões de pobreza. Para ele, a diferença está na “impunidade” desses crimes.
“Entre a Baixada e Ipanema, as diferenças se relacionam ao modo como as autoridades e pessoas que se interessam por estes casos resolvem ou lutam para que esses crimes tenham um encaminhamento correto, e que os assassinos e agressores sejam devidamente punidos. Na zona sul da cidade do Rio de Janeiro eles são solucionados rapidamente. Os homofóbicos de Ipanema conseguem mobilizar o poder público, grupos GLBT, a sociedade e a mídia, enquanto na Baixada Fluminense esses mesmos crimes ficam sem solução. Há um descaso das autoridades e até mesmo de grupos que lutam pelos direitos humanos”, sublinha Vagner de Almeida.
Seu último documentário, “Basta um dia”, conta a história de atores sociais que vivenciam ou testemunham chacinas, assassinatos e brutalidades, retratando a situação de exclusão e abandono dessas pessoas pelo poder público e outras instâncias da sociedade. “Além de denunciar a banalidade e impunidade que caracterizam os crimes de ódio contra gays e travestis, buscamos também aumentar o coro de vozes e resistências de todos aqueles que lutam pela cidadania plena e pela afirmação da vida como um valor supremo e universal”, afirma Vagner nesta entrevista.
Vagner Almeida é coordenador de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) – seus filmes fazem parte do projeto “Homossexualidade” desta instituição – e membro do Centro de Gênero, Sexualidade e Saúde da Universidade de Columbia, em Nova York.
Como cineasta o sr. volta seu olhar para a Baixada Fluminense. Por que este cenário?
Como trabalho com diversidades, principalmente sexual, acabei encontrando um lugar para poder entender sexualidade, gênero e saúde dentro de um cinturão também de pobreza, violência e doença. Quando iniciamos o Projeto Homossexualidade na ABIA, em 1993, fizemos um imenso apanhado do Grande Rio, analisamos todos os pontos que atuávamos e acabamos percebendo que a Baixada era potencialmente um lugar de intensa pesquisa.
"Basta um dia", seu último filme produzido na região, trata de crimes de ódio contra homossexuais. Quem são as maiores vítimas desses crimes?
Os jovens gays e as travestis são grupos de intensa vulnerabilidade para esses grupos de extermínio. São chamadas de presas fáceis. Dezenas de jovens na pesquisa que antecedeu às filmagens relatam o que acontece com eles e elas todos os dias e noites quando estão atuando como “trabalhadores sexuais” na Via Dutra. Relatam e mostram as marcas da violência, cicatrizes e estilhaços de balas em seus corpos, e a eterna incerteza do amanhã. Foi depois desses fatos todos que decidi dar ao filme o título de “Basta um dia”. É assim que esses atores sociais da região relatam as suas vidas. Acreditam que podem sair de suas casas e não retornarem mais.
O que propicia a impunidade deste tipo de ação naquela região?
Poderíamos começar a pensar na falta de autoridade, de policiamento ostensivo, de políticos com interesse no social, de saúde pública mais presente, de trabalho e de educação para todos os jovens gays, de escolas profissionalizantes e de educadores preparados para conviverem com a diferença.
Recentemente, diversos casos de agressões a gays têm sido registrados num tradicional ponto de sociabilidade GLBT, na rua Farme de Amoedo, em Ipanema, lugar geralmente freqüentado por pessoas de classes altas. Isso revela que a violência homofóbica não está restrita a áreas urbanas mais "esquecidas", como a Baixada Fluminense? Que diferenças o sr. identifica entre os dois casos?
Crimes são iguais em qualquer lugar. Não há diferença entre um crime de ódio ocorrido em áreas socialmente privilegiadas ou nos cinturões de pobrezas. A diferença está na impunidade, no modo como as autoridades e pessoas que se interessam por esses crimes lutam por um encaminhamento correto, no sentido de que os assassinos e agressores sejam devidamente punidos. Na zona sul do Rio de Janeiro esses crimes são solucionados rapidamente. Os homofóbicos de Ipanema conseguem mobilizar o poder público, grupos GLBT, a sociedade e a mídia. Na Baixada, esses mesmos crimes ficam sem solução. Há um descaso das autoridades e até mesmo de grupos que lutam pelos direitos humanos. Há um descaso, sim, de toda a sociedade.
Em Ipanema, os agressores são identificados como pitboys, jovens de famílias de classe média moradores da região. Quem são os agressores da Baixada?
De acordo com os relatos dos atores sociais que tenho entrevistado, os agressores são franco atiradores, clientes homofóbicos e religiosos que incitam a população contra a comunidade GLBT. São pessoas que impõem o toque de recolher, não permitindo que homossexuais transitem livremente nas áreas dominadas por eles. Apedrejam ou queimam os corpos das vítimas. Em áreas elitizadas, resolver o mesmo tipo de violência dá visibilidade e faz com que se adqüira prestígio aos olhos públicos. Mas não se resolve o caso do outro lado da cidade. Na Baixada, não há a “elite gay cor de rosa”, são raros os políticos que mostram interesse nos casos, apesar de terem um eleitorado de milhares de pessoas votando neles. A própria mídia retrata os fatos que ocorrem na zona sul, mas raramente vê-se estampada nas capas dos periódicos mais intelectualizados a violência que arrasa a Baixada diariamente. A não ser nos jornais sensacionalistas, que estampam suas manchetes com fragmentos de frases como “UMA QUASE MULHER MORTA NA DUTRA”. Tratava-se de uma jovem travesti que foi barbaramente assassinada na hora de seu trabalho à beira dessa rodovia. Todos os dias isto ocorre lá e não há nenhuma mobilização. Temos sim uma faixa separando uma elite gay dos homossexuais que vivem nos cinturões de pobreza da Baixada Fluminense. É a nossa realidade, porém lamentável.
Porém, não existem diferenças entre os crimes. A mesma bala que fere mortalmente a travesti ou o gay na Baixada, pode ser a mesma que matou um gay na zona sul, Nova Iorque, Paris ou Barcelona. Crimes são crimes, mas a forma de penalização no Brasil é que nos parece completamente diferente quando se trata de áreas socialmente privilegiadas ou nos cinturões de pobreza do Rio de Janeiro.